UMA QUESTÃO RELEVANTE

07:28 by Bruno Godinho

Se tem uma coisa que aprendi, é que do alto dos meus quase dois metros é impossível ser discreto. Não adianta. Se entro no elevador, olham pra cima. Se estou numa festa, sou o ponto de referência. Se é carnaval, to pra Boneco de Olinda. E, independente de onde ou o que esteja fazendo, sempre perguntam: “você joga basquete?!”. Eita perguntinha chata. Tenho vontade de respoder: “Sim, jogo. Sou publicitário apenas nos fins de semana entre um treino ou outro”.


Adaptei-me com a situação. Se um dia fui grande, hoje sou alto. Se um dia pensava que tamanha dimensão me tornara diferente, hoje isso me diferencia da maioria. É aquela velha história, em terra de cego, quem tem olho é caolho e se dá muito bem com essa deficiência.

Se por um lado chamo a atenção por onde passo e sou visto mesmo quando quero passar despercebido, hoje, me reservo ao direito de sumir, desaparecer. Como? Utilizando o que para uns é o livre arbítrio divino, para outros a incompetência social e que pra mim é o melhor dos direitos: o da irrelevância.

Tá bom que nunca esteve nas tábuas de Moisés o mandamento: “honrarás pai e mãe e serás irrelevante”. Também nunca vi na constituição, em algum artigo, próximo a algum parágrafo, perto de algum inciso, ao lado de alguma palavra em latin, que diga: “toda criança tem o direito à cidadania e à irrelevância”. Esse direito ninguém pode nos dar, por isso é tão difícil conquistá-lo.

Desde os tempos em que nossos ancestrais peludos urravam para se tornar o macho-alfa até contemporaneidade dos colecionadores de “amigos” no Orkut, todos querem se mostrar, ser vistos e lembrados. Afinal, se não se sabe se quem veio primeiro foi o ovo ou a galinha, é indispensável que saibamos pelo menos o nome dessa galinha, não é?! Não.

Num tempo em que todo mundo quer ser famoso, em que as pessoas se inscrevem mais em reality show que à universidade e que as subcelebridades roem os ossos deixados por quem já é referência, remar contra a corrente não é só um ato contrassenso é uma questão de sobrevivência.

Abro mão de ser mundialmente famoso, de sair em capas de revistas e anúncios de carros. Não quero ser Brother de ninguém, Fazendeiro e muito menos Mutante. Também não faço questão de liderar a seita tuiterana e arrebanhar seguidores mundo virtual a fora. Chega. Me reservo ao direito da irrelevância. De falar e não ser ouvido, de escrever para nenhum leitor e de andar na chuva sem a preocupação de levar outros a se molharem. Quero que as referências a minha pessoa sejam só aquelas citadas no início do texto, quando entro no elevador e sou repetidamente acometido por uma indagação ingênua e irritante. E antes que você pergunte, não, não jogo basquete.

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O DIA EM QUE MORRI

16:43 by Bruno Godinho

O dia em que morri foi um daqueles para ficar pra sempre na memória. Bom, isso se meu cérebro ainda conseguisse gravar algo. É engraçado, mas quando morto você consegue ver tudo com outros olhos, mesmo que já tenha doado as córneas.

Ah, o dia em que morri. Que dia! Pensei que minha vida seria mostrada como num filme ou Data Show, mas me enganei. Não vi toda minha vida, só as partes em que vivi. Lembrei do pique-esconde na casa da avó; do gol meio que de canela que garantiu a vitória do meu time; lembrei imediatamente do primeiro beijo. Também do último beijo. Ou melhor, de todos os beijos, numa seqüência de dar inveja às comédias românticas de Hollywood. Recordei o dia em que eu e meu pai ganhamos na Canastra e meu irmão teve que pagar uma prenda. E como me esquecer da primeira volta na BMX surrada, da minha primeira vez suada, do primeiro amigo, do primeiro sorriso... era a primeira vez que morria, e senti como se não fosse a última.

É engraçado assistir de camarote ao meu enterro e ver meu chefe, mas não pensar no trabalho. Ver meus pais, mas nem lembrar daquela surra com galho de árvore. De ver meu amor, meus amores, e não perceber que um dia a elas deixei cair uma gota de lágrima das minhas vistas já doadas. Olhei a tudo como quem vê uma estação de ônibus lotada e espera o veículo partir. Olhei, vi, sorri.

Distante da frustração dos que lamentavam minha ausência, me senti aliviado. Eu estava longe também dos problemas que me cercavam, dos dilemas que me perseguiam e daquele grilinho bobo que eu cultivava em minha cabeça, agora em decomposição, mas que não me permitia dormir. Enfim, descansei em paz.

Ah, o dia em que morri. Finalmente percebi que já estava morto há muito tempo e que tem gente caminhando sobre a Terra sem nunca ter vivido.

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Esta é uma singela homenagem ao meu primo postiço, Jávier Godinho. Mesmo sem saber, este homem me inspira a tentar escrever tão bem quanto ele, a buscar em mim a religiosidade que nele há de sobra e, principalmente, a viver.


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